Rancor ou mentira? Dos males, qual o pior?

Sei que não se deve guardar rancor de nada nessa vida. E desejar algo de mal, ou pelo menos, algo não muito bom, a uma pessoa, é errado. Mas negar um desejo é uma mentira! E mentir é errado.

Desde criança, aprendi com meu pai, o valor e a importância do trabalho digno, e isso é uma lição que sigo a risca até hoje. A exemplo de minha mãe, que Deus a tenha, tento seguir o mesmo caminho da honestidade que ela trilhou em vida, por isso, trabalho honestamente desde meus 10 anos de idade e sem dúvida nenhuma, Deus e a vida tem me recompensado por isso.

Minha mãe, sempre dizia que “quando Deus permite que algo ruim nos aconteça, é pra evitar que aconteça algo pior ainda”. E para provar que ela não estava errada, vou relatar alguns fatos da minha vida.
Uma semana após completar 14 anos de idade tirei minha CTPS (Carteira de Trabalho e Previdência Social), e meu CPF (Não sou da época do CIC), e fiquei super feliz, pois era a possibilidade de arrumar em emprego de verdade. O que não demorou a acontecer, pois em pouquíssimo tempo eu já estava trabalho de carteira assinada em uma extinta unidade do SESC que ficava na região do Itaim Bibi. Isso só reforçava a minha idéia que enquanto fizesse uso da honestidade eu estaria em progresso pessoal e sempre seria recompensado financeiramente.

Já com meus 15 anos de idade, e apesar de utilizar em casa a maior parte do salário mínimo que eu ganhava em URVs, eu conseguia juntar uma grana e me dar o luxo de comprar umas roupas e tênis de “marca” como Nike, New Balance, QuikSilver, Wrangler, etc... Meus irmãos, que já haviam sofrido assaltos, sempre me alertavam que as roupas que eu usava atraiam ladrões. Afinal, o roubo de tênis de marca era uma coisa muito comum na época, mas eu não me preocupava, apesar de descer do ônibus na Avenida Santo Amaro e andar quase toda a extensão da Rua Leopoldo Couto Magalhães Junior, a região do Itaim era muito bem policiada, mas ainda assim procurava andar rápido e sempre atento para evitar o pior.

Certo dia, caminhando apressadamente após descer do ônibus, avistei dois policiais parados em frente ao antigo Mappin da rua Leopoldo, fiquei aliviado, pois sabia que ali eu não teria problemas com ladrões por causa da minha roupa, mas o que eu jamais imaginaria, é que eu teria problemas com a polícia por causa da minha roupa.

Ao passar em frente aos policiais, recebi imediatamente de maneira arrogante e estúpida, a ordem para encostar na parede. Achei muito estranho, pois eu estava bem vestido, e era branquinho com carinha de bebe (digo isso porque já havia testemunhando, com muita dor no coração, um policial se dirigir ao meu irmão com pesadas ofensas racistas). Mesmo assim estava tranqüilo, pois eu acreditava que seria tratado com o devido respeito, depois que eu o informasse que, apesar de jovem, era trabalhador e fazia parte do quadro de funcionários de uma grande instituição ali da região.
Após me revistar, um deles me pediu documentos e me perguntou onde eu morava e o que eu fazia. Pobre de mim, na inocência, respondi cheio de orgulho e satisfação que morava no Jd. Horizonte Azul e que trabalhava no SESC próximo dali, disse ainda que aquele era meu trajeto diário.

Mas nada adiantou o que eu disse, pois como se pouco importasse eu que acabará de falar, ele me perguntou.
-Onde está a droga?
Mais uma vez e de forma educada, como bom moço que era, respondi
- Não seu policial, eu não uso drogas. 
Entretanto, a terceira pergunta do policial me fez perceber que as coisas não acabariam bem.
- Onde você roubou esse tênis?
Perguntou o policial. E na minha tentativa de transparecer a pessoa de bem que eu era eu disse,
-Não roubei, eu comprei, com meu salário!.
Mas, como se fosse obvio, ele me falou
-Você quer que eu acredite que alguém como você, tem dinheiro pra comprar um tênis desse e uma camiseta desta? Fala logo, onde você roubou esse tênis?
Havia um grande fluxo de pessoas naquela região, e eu já estava me sentindo constrangido com os olhares na rua. Não conseguia entender o porquê daquele tratamento. O que será que eu havia feito de errado? Onde foi que eu passei a errada impressão da minha pessoa?

Tentando entender o motivo do tratamento que recebia, perguntei ao policial.
- Mas o que eu fiz demais? Eu to indo pro meu trabalho!
E antes que pudesse disser algo mais, fui interrompido por uma forte tapa no rosto, seguindo das palavras...
-Eu sei que você roubou isso seu maconheiro. Quem você quer enganar? Eu sei qual é a sua.
Com medo, sem saber o que fazer, e sem coragem pra abrir a boca, simplesmente abaixei a cabeça para não encarar a vergonha, e evitar que dos olhos já carreados, escorressem lágrimas. Após alguns minutos, o outro policial me entregou o documento, e me disse...
-Vai, sai fora moleque. E não quero te ver aqui novamente!
Ainda sem levantar a cabeça e sentindo meu rosto queimar, mais pela vergonha do que pela agressão, retornei ao meu trajeto sob os muitos olhares curiosos.

Ainda hoje, tento acreditar que se não tivesse sido parado por aqueles policiais,  algo muito pior poderia ter me acontecido. Afinal, alguém poderia ter roubado meu tênis. Infelizmente, em decorrência desse acontecimento, em menos de duas semanas após o fato, tive meu tênis roubado dentro de um ônibus. Isso porque, com receio de encontrar aqueles policiais novamente, mudei meu trajeto e comecei a ir para o serviço em outra linha de ônibus. Achei estranho, afinal, diferente do que minha mãe me ensinou, de uma coisa ruim foi possibilitado outra pior ainda.
Saiu uma matéria no jornal “Metro” de São Paulo no dia 31 de março, onde uma pesquisa apontava que 68,38% da população brasileira, não confia ou confia pouco na policia, só na região sudeste esse percentual é de 75,2%. Eu entendo esses números, pois já na minha infância, testemunhei e fui vitima de abusos policiais.

Confesso que não consigo esquecer aquele dia, e se eu disser que não desejo nada de mal a aquele policial vou estar mentido. Entretanto não quero que nada grave aconteça com ele. Na verdade, eu queria que ele sofresse o mesmo que ele me fez sofrer, exatamente igual, nem mais nem menos. Bom, talvez um pouquinho mais. Afinal, diferente de mim, ele certamente não era um trabalhador honesto e nem mesmo uma pessoa justa.

Começo a achar que esse blog é meu psicólogo. Pois estou me sentindo ótimo por relatar algo que ha tantos anos me perturba a mente.

Boa noite, São Paulo! Ainda estou acordado!

Comentários

  1. Complicado mesmo mano, nunca passei por uma situação dessas... mas, tento imaginar o qto é constrangedor td isso. Sem falar na revolta que isso gera né!

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  2. Se fosse hoej em dia esse "puliça" já tinha tomano no cpu!

    Existem muitos puliciais bons, como os que me salvaram no dia que tomei pipoco, mas existem muitos (na maioria das vezes soldadinhos) que abusam do poder.

    Isso foi ontem, é hoje e será amanhã. Mas se eles podem abusar do poder nós DEVEMOS responder com justiça, pois ela só é feita se o o bem se cala!

    bjo na bunda Genildão!

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  3. com certeza o pior dos males é o rancor.

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  4. Gê, acho que você nem imagina o quanto eu gosto de ouvir suas histórias... por uma série de motivos, mas principalmente porque você é muito gente. Gente ao sentir tudo isso, gente ao expressar tão abertamente tudo isso também.

    É lamentável esse tipo de conduta do policial, e sabemos infelizmente que isso continua até os dias de hoje, mas te digo que onde quer que sua mãezinha esteja, ela é muito muito muito orgulhosa da pessoa que você é até hoje. Tanta gente poderia ter passado pela mesma situação e usar disso como uma desculpa para agir de forma impensada, ou descontar em alguma outra pessoa, (inocente da mesma maneira) todo o mal que sofreu.

    Acredito muito que tudo o que fazemos, em algum momento volta... mesmo! Você não precisa gastar seu tempo e energia desejando que algo de ruim aconteça com esse cara... confie e siga no que você julga correto na sua vida. A vida se encarrega do resto... por mais brega que isso possa parecer.rs

    Quando a gente guarda rancor, nós somos os mais prejudicados porque o corpo fisico acumula e somatiza toda essa energia ruim... e isso parece meio hipongo mas é a mais pura verdade. Vou te mandar um texto falando sobre isso depois.

    Que bom que você conseguiu desabafar e se livrar de algo que te incomodava a tanto tempo. Faça isso quantas vezes for preciso!

    beijo

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